quinta-feira, 16 de setembro de 2010

ATUALIZADO! - Ementa / Programação do Grupo de Estudos

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE TEORIAS E PRÁTICAS DE ENSINO

Grupo de Estudos e Pesquisa:
Modos de Existência, Sexualidades e Gênero: problematizando e reinventando práticas

O grupo de estudos em processo de construção nasce da demanda política e teórica de se pensar os processos educativos contemporâneos como um campo problemático permeado por questões que nos remetem à Diversidade Sexual e de Gênero. A atual visibilidade do Movimento LGBTT e de Diversidade Sexual, além das incipientes ações de políticas públicas sobre tais temáticas convocam os profissionais e os teóricos da Educação a porem em análise suas práticas e valores; práticas e valores que limitam e ampliam o campo do possível e que envolvem questões como a heteronormatividade, o heterossexismo, o machismo, a profusão e dispersão de práticas sexuais e de gênero, identidades e pós-identidades sexuais etc.

Palavras-Chave: diversidade sexual, gênero e educação
Coordenador: Prof. Dr. Alexsandro Rodrigues
Parceria: Plur@l – Grupo de Diversidade Sexual
Tipo: Grupo de Estudo e Pesquisa
Área temática: Educação, Cultura e Direitos Humanos
E-mail: xela_alex@bol.com.br
Público Alvo: Alunos de graduação e pós-graduação, alunos egressos, professores da Universidade, professores da educação básica e demais interessados.

Data Textos
02/09 Texto 1 FOUCAULT, Michel. “Sobre a história da sexualidade”. In: Microfísica do poder. 3ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

02/09 Texto 2 FOUCAULT, Michel. “O dispositivo da sexualidade”. In: História da Sexualidade I – A vontade de saber. 15ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

02/09 Texto 3 FOUCAULT, Michel. “O verdadeiro sexo”. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos e Escritos V Michel Foucault: Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.


16/09 Texto 4 SILVA, Tomaz Tadeu da. “A produção da identidade e da diferença”. In: Identidade e Diferença. Petrópolis: Vozes, 2005.


16/09 Texto 5 WOODWARD, Kathryn. “Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença. Petrópolis: Vozes, 2005.


30/09 Texto 6 LARROSA, Jorge. “Tecnologias do Eu e educação”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.


30/09 Texto 7 FILHO. Alípio de Sousa. Foucault: “O cuidado de si e a liberdade ou a liberdade é uma agonística”. In: JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque, VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.


21/10 Texto 8 MACHADO, Leila Domingues. “Subjetividades contemporâneas”. BARROS E BARROS, Maria Elizabeth. Psicologia: questões contemporâneas. Vitória: Edufes, 1999.


21/10 Texto 9 PAIVA, Antônio Crístian Saraiva Paiva. “Amizade e modos de vinda gay: por uma vida não fascista”. In: JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque, VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.


04/11 Texto 10 SCOTT. Joan. .”Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”. Educação e Realidade, V. 20 (2), 1995.


04/11 Texto 11 BUTLER, Judith. “Sujeitos do Corpo/Sexo/Gênero”. In: Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.


18/11 Texto 12 LOURO, Guacira L. “Genêro, sexualidade e poder: Diferenças e desigualdades: afinal, quem é diferente”. In: _______ Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.


18/11 Texto 13 MEYER. Dagmar Estermann; SOARES. Rosângela de Fátima Rodrigues. Corpo, gênero e sexualidade nas práticas escolares: um início de reflexão. In: _______.(Org.) Corpo, gênero e sexualidade. 2.ed. Porto Alegre: Mediações, 2008.


18/11 Texto 14 LOURO, Guacira Lopes. “Pedagogias da Sexualidade”. In: ________. Pedagogias da sexualidade. In:______ (Org.) Belo Horizonte: Autêntica, 2001.


02/12 Texto 15 PRECIADO, Beatriz. Multidões “queer”: notas para uma política dos “anormais”. Disponível em: . Acesso em 13 Jul 2008.


02/12 Texto 16 PRECIADO, Beatriz. “Visibilidad y normalización”. Jornal La Vanguardia. Edición del miércoles, 22 septiembre 2004, página 2-4. Disponível em http://hemeroteca.lavanguardia.es/edition.html?edition=Sup.Cultura&bd=22&bm=09&by=2004&ed=22&em=09&ey=2004. Acesso em 23 Set 2004.


02/12 Texto 17 HEILBORN, Maria Luiza. “Ser ou Estar Homossexual: dilemas de construção da identidade social”. In: PARKER, Richard e BARBOSA, Regina. Sexualidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 136-145.

Texto 18 MISKOLCI, Richard. Do desvio às Diferenças. Teoria & Pesquisa 47 – Revista de Ciências Sociais, Jul/Dez de 2005. Disponível em http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/issue/view/58/showToc.

IDENTIDADE & GÊNERO: composições e impasses entre Foucault e os estudos queer

Henrique José Alves Rodrigues
Licenciado em História pela Ufes
Mestre em Psicologia Institucional pela Ufes

Os estudos e conceitos que analisam os processos de normalização contemporâneos e que receberam o nome de estudos queer emergiram nos anos 1990 nos EUA, fruto da intercessão de grupos de militância feminista, lésbica e gay – críticos ao processo de assimilação das minorias sexuais aos valores e instituições da sociedade ocidental – com as intervenções acadêmicas de pesquisadores do campo dos estudos culturais e literários norte-americanos.

No mundo anglo-saxão, queer significa estranho, abjeto, e era utilizado pelo discurso preconceituoso para se referir pejorativamente aos indivíduos e aos grupos sociais com práticas não-heterossexuais. Alguns grupos de minorias sexuais e de gênero se apropriaram da noção queer na tentativa de afirmar o caráter desestabilizador de seus modos de vida e negar o processo de normalização de suas vivências sexuais e afetivas. A idéia é afirmar o caráter estranho, abjeto e ininteligível dos modos de vida e de práticas sexuais e de gênero minoritários. O alvo do discurso queer não é apenas o heterossexismo compulsório de nossas sociedades, mas também o processo de normalização do movimento social e o modo de vida das minorias sexuais.

Não se trata de uma “escola de pensamento”, muito menos uma “teoria”, mas de um campo de análise não coeso, mas que possui como princípio norteador a crítica aos processos de normalização e o investimento na produção de modos de vida que escapem das armadilhas dos exercícios de poder. As produções acadêmicas de Eve K. Sedgwick, Judith Butler, David M. Halperin e Michel Warner são consideradas precursoras dos estudos queer, tendo como uma de suas principais referências e condições de emergência o Volume I da História da Sexualidade de Michel Foucault.

O sociólogo Richard Miskolci (2009) define muito bem o alvo político e teórico dos ativistas e pensadores queer. Da segunda metade do século XIX até a Segunda Guerra, as sociedades ocidentais vivenciaram aquilo que poderíamos chamar de heterossexismo compulsório. Nesse período, discursos e instituições sociais prescreviam a heterossexualidade para todos os indivíduos, patologizando e/ou criminalizando – conforme a legislação de cada país - os laços homoafetivos.

Após a Segunda Guerra, nos anos 1950, o dispositivo da sexualidade aperfeiçoa seus exercícios de poder. Com a despatologização e descriminalização progressiva dos laços homoeróticos, o heterossexismo compulsório se transfigura em heteronormatividade: os laços afetivos e eróticos entre pessoas do mesmo sexo são cada vez mais tolerados social e juridicamente; desde que todos, héteros e homossexuais, possuam um modo de vida heterossexualizado. O acesso das minorias sexuais aos direitos civis possui como contrapartida a aderência de suas economias afetivas e eróticas ao modo de vida heterossexual: hierarquização das posições sexuais e binarismo de gênero (ativos e passivos), amor romântico, matrimônio, família, contratos, mercados gays etc. Portanto, as práticas queer pretendem desconstruir a heteronormatividade através de uma aposta radical na experimentação de novos modos de vida, novas formas de prazer, novas formas de gênero e de intervenção política.

Fortemente influenciados pela analítica do poder e do dispositivo da sexualidade operados pela obra de Foucault, os estudos queer colocam em análise a obsessão identitária do movimento feminista e gay. Problematizam a necessidade de o movimento feminista e gay produzirem um sujeito identitariamente coeso para que a luta contra o preconceito sexual e de gênero se efetive.
É interessante apontar para a intercessão entre feminismo e movimento gay nos estudos queer, pois a categoria de gênero, tão importante para a luta pelos direitos das mulheres, se constitui em ferramenta teórica de suma importância nas produções deste campo de análise. Porém, diferentemente dos usos que o próprio movimento feminista fez desta categoria e que Rolnik (2007) muito bem criticou ao proclamar “uma guerra aos gêneros”, as teóricas e os teóricos queer, como Butler (2008), Preciado (2008) e Louro (2004) entendem gênero como práticas de produção de nossos corpos, nossos desejos e nossos modos de vida. Embora o discurso heteronormativo de gênero tente o tempo todo passar a idéia de uma imutabilidade, de uma quase essência de gênero:

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser. A genealogia política das ontologias de gênero, em sendo bem sucedida, desconstruiria a aparência substantiva do gênero, desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria esses atos no interior das estruturas compulsórias criadas pelas várias forças que policiam a aparência social de gênero (BUTLER, 2008, p. 59).

Se por um lado os estudos queer apontam o gênero como exercício de poder sobre os corpos, este mesmo campo de análise aponta que há a possibilidade de deslocamentos de gêneros, ou seja, resistir à normalização dos corpos de “dentro” do discurso de gênero, produzindo outros corpos e não apenas o masculino e o feminino da heteronormatividade.

Nesta perspectiva, podemos pensar e praticar não apenas um binarismo de gênero, como o discurso da heteronormatividade postula, mas também uma proliferação e dispersão de gêneros. Portanto, as problemáticas das minorias sexuais são antes de tudo questões de gênero:

• Que usos fazemos de nossos corpos e prazeres?
• Que efeitos de poder e resistência as prática de gênero produzem?
• Quais universos existenciais estamos inventando ou reproduzindo?
Butler (2008) radicaliza a centralidade do conceito de gênero, contrapondo-se à clássica leitura sociológica de definir sexo = natureza e gênero = cultura:
Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se nenhuma. Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. [...] Resulta daí que o gênero não está para cultura como o sexo está para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pela qual ‘a natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura (BUTLER, 2008, p. 25).

Portanto, o binarismo sexual homem-mulher seria uma das várias possibilidades de práticas de gênero. Sexo seria uma performance de gênero, dentre várias possíveis. Butler lança mão do conceito de performatividade, para desconstruir a noção naturalizada de gênero ou de identidade sexual. Performatividade seria o “[...] poder reiterativo do discurso, para produzir os fenômenos que ele regula e constrange” (BUTLER, 2001, p. 155). Ou seja, os discursos heteronormativos – e na perspectiva queer, todos os saberes institucionalizados no Ocidente são heteronormativos: psicologia, psicanálise, saberes médicos, ciências sociais etc. - agem como se apenas analisassem “dados” anteriores aos discursos, como a identidade sexual dos sujeitos. Mas, na verdade, os discursos heteronormativos criam estes “dados”; os discursos produzem sujeitos com identidades heterossexuais através de uma constante reiteração, que começa desde o nascimento dos indivíduos e os acompanha, ininterruptamente, em suas trajetórias de vida.

Ao contrário de certos discursos psicológicos que defendem a existência de uma seqüência de fases para o desenvolvimento sexual e uma vez terminada tal seqüência, o indivíduo teria uma identidade sexual consolidada ou estaria no plano do desvio, a ação do discurso heteronormativo é ininterrupto sobre os indivíduos, desde seu nascimento até o fim de suas vidas, o que demonstra o quanto de artifício há na construção de uma identidade sexual. E o quanto esta construção é frágil, já que precisa de constantes reiterações discursivas no tempo e no espaço (na família, na escola, no trabalho, no lazer, no divã etc.).

Nesta perspectiva, pensar apenas em práticas de gênero masculino e feminino seria uma performance do discurso da sexualidade. Um corpo sexualizado é uma, dentre várias performances de gênero que podem existir. Porém, os novos modos de vida contemporâneos estão problematizando os limites do discurso heteronormativo.

Preciado (2008), apesar de afirmar a importância da obra de Michel Foucault, obra que possibilitou as condições de emergência dos estudos queer, aponta para o que ela considera limite teórico e metodológico do filósofo francês. Para a referida teórica, a história do dispositivo da sexualidade teria outros contornos, se Foucault atentasse para as novas tecnologias de poder do século XX e para os deslocamentos de gênero que foram construídos nas sociedades ocidentais desde o início do século XX e que se intensificaram no momento em que Foucault escrevia olhando apenas para os gregos antigos ou para o período clássico europeu (séc. XVII ao XIX):

Em realidade, a análise foucaultiana da sexualidade depende em demasia de certa idéia da disciplina do século XIX. Apesar de conhecer os movimentos feministas americanos, a subcultura S/M ou o FHAR na França, nada disso o levou realmente a analisar a proliferação das tecnologias do corpo sexual no século XX: medicalização e tratamento das crianças intersexuais, gestão cirúrgica da transexualidade, reconstrução e ‘aumento’ da masculinidade e da feminilidade normativas, regulação do trabalho sexual pelo Estado, boom das indústrias pornográficas... Sua rejeição da identidade e da militância gay o levará a se inventar uma retro-ficção à sombra da Grécia Antiga (PRECIADO, 2008, p. 05).

Como podemos perceber, o conceito de gênero, reelaborado e “limpo” de noções essencialistas e naturalizantes, é fundamental, do ponto de vista queer, para se analisar tanto o poder normalizador – produtor voraz de corpos masculinos ou femininos, corpos coerentes e inteligíveis, daí a intervenção médica no corpo intersexual ou no corpo transexual, que devem ser ou masculinos ou femininos, não havendo lugar para ambigüidades – quanto para a produção de resistência de minorias sexuais, que procuram elaborar performances de gênero em seus corpos que são ininteligíveis para norma heterossexual; são performances do estranho, do abjeto, portanto, queer.

Para Preciado (2008), o século XX viveu uma proliferação de anormais que ela denomina de potência que os saberes sexuais tentaram normalizar. Para a heteronormatividade, é inadmissível um corpo com genitália feminina, com performance de gênero masculina e com desejo por homens: este indivíduo é hetero ou homossexual? Masculino ou feminino? Lésbico ou gay? A linha de coerência entre sexo/gênero/desejo é rompida. Numa linguagem queer, deslocada.

Uma questão fundamental para se entender o campo de análise queer é que se trata de uma postura pós-identitária, mas, em hipótese nenhuma, anti-identitária. É uma postura pós-identitária, pois problematiza o discurso identitário e aponta o desejo de normalização implícito na categoria de identidade e de gênero. Mas não é anti-identitária, pois defende que as minorias podem produzir deslocamentos – leia-se resistência – através de outras estratégias identitárias e de gênero.

Neste sentido, Butler (2008) se baseia na analítica de poder presente na obra de Foucault para defender a idéia de que poder e sexualidade não são pólos opostos como romantizam discursos “emancipatórios” que defendem a “verdadeira sexualidade”, anterior ou para além da suposta ação repressiva do poder sobre a sexualidade.

Se para Foucault (1988), poderes, saberes e instituições produziram a sexualidade e nos incitaram a expressá-la; para Butler (2008), produzir a resistência não pressupõe romper com as categorias do discurso da sexualidade, mas, de dentro do dispositivo da sexualidade produzir deslocamento. É possível utilizar as mesmas categorias do discurso normalizador, como a identidade, mas deslocando-as, produzindo outros sentidos.

Butler (2008) tece severas críticas a Foucault por, em seus últimos escritos e entrevistas, não ser coerente, na sua concepção, com a noção de poder presente no volume I da História da Sexualidade. Butler foca sua análise no texto produzido por Foucault, para analisar o diário da hermafrodita – hoje diríamos intersexual - Herculine. Segundo Butler, este escrito de Foucault reabilita a imagem que sua História da Sexualidade tentou desconstruir: a de uma “verdadeira” sexualidade anterior às marcas do poder; poder entendido como repressor de nossa suposta essência sexual primária.

Foucault analisa a experiência erótica de Herculine “[...] como limbo feliz de uma não identidade [...]” ( BUTLER, 2008, p. 154). Butler não consegue conceber as práticas de resistência ao poder “fora” das categorias deste mesmo poder. Para a pensadora queer, que também analisou os diários de Herculine, Foucault não percebeu que a intersexual em questão se submetia e se insurgia contra o dispositivo da sexualidade. Mesmo tendo uma experiência erótica original, esta experiência não estava imune às categorias do poder, como a de identidade sexual e de gênero. E isso, para Butler, não se constitui problema. A resistência não vem de um “fora”, pois não haveria um “fora” em relação ao poder. Resistir consiste em se apropriar das categorias de poder e produzir outros efeitos.

Preciado (2008) também se contrapõe ao discurso anti-identitário que ela não atribui a Foucault, mas a certas leituras apressadas sobre o filósofo francês:

O fato de que haja tecnologias precisas de produção de corpos ‘normais’ ou de normalização de gênero não acarreta um determinismo nem uma impossibilidade de ação política. Pelo contrário. Dado que a multidão queer traz consigo mesma , como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, ela tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual. Isto é concebível à condição de se evitar duas armadilhas conceituais e políticas, duas leituras (equivocadas mas possíveis) de Foucault. Deve-se evitar a segregação do espaço político que converteria as multidões queer numa espécie de margem ou reserva de transgressão. Não se deveria cair na armadilha liberal ou neo-conservadora que levaria a conceber as multidões queer como algo oposto às estratégias identitárias (PRECIADO, 2008, p. 06).

Preciado (2008) defende o que chama de ‘identificações estratégicas’, que produziriam a desconstrução do próprio postulado essencialista do discurso identitário.

Se alguns foucaultianos se incomodam com a proliferação identitária no movimento de minorias sexuais, que produz incessantemente novas letrinhas, que correspondem a novas identidades – GLS; GLBT; LGBT; LGBTT; LGBTI 1 etc. – as análises queer apostam na força desta proliferação identitária que, ao contrário do discurso identitário do poder, mostra explicitamente o seu caráter de artifício, performático, construído, não natural, assumindo ares de paródia: até onde vai a mudança de sigla, o acréscimo de letras, a troca da ordem de letras? Ou seja, a força do atual movimento de minorias sexuais é expor a estrutura de construção de toda e qualquer identidade, entendendo a resistência como estratégia de deslocamento das categorias do próprio poder.

Considero que o pensamento de Foucault, mesmo quando elabora um texto como a análise sobre a experiência erótica de Herculine, em que se preocupa menos com os exercícios de poder e mais com a estética da existência, não é incompatível com a noção de gênero, enquanto performance e a noção de identificações estratégicas de Preciado. Isso não é incompatível sequer com a analítica do poder presente no primeiro volume de sua História da Sexualidade.

Na minha concepção, estas críticas em relação a Foucault, principalmente as de Butler (2008), desconsideram o movimento de pensamento do filósofo francês, com suas inflexões, bifurcações e extravios. Butler chega a escrever que “[...] Os diários de Herculine fornecem uma oportunidade de ler Foucault contra ele mesmo” (2008, p. 144), numa fixação pela imagem de um poder-produção que tudo abarcaria. Este apego a um momento do pensamento de Foucault dá a impressão de que Butler quis ser mais “foucaultiana que Foucault”. Seria um puxão de orelhas no filósofo francês, para que o seu pensamento voltasse para os trilhos, não se aventurasse por outros caminhos, não se desencaminhasse.

Se contrapondo a posturas como a de Butler (2008), Souza Filho (2008) afirma que o pensamento de Foucault não permanecia o mesmo, mas era permeado por inflexões, que Butler tende a considerar como incoerência de conjunto. Mesmo na História da Sexualidade, a partir do volume II – O Uso dos Prazeres -, Foucault (1984) produz inflexão, seu pensamento bifurca, quando suspende a análise sobre os exercícios de poder sobre os corpos na produção da sexualidade, como no primeiro volume, e passa a concentrar sua análise no processo de subjetivação: quais os modos pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem sujeitos sexuais?

A partir do volume II, a História da Sexualidade reforça a atenção sobre as formas de exercício ético, que, segundo Souza Filho (2008), ganharam mais peso nas últimas obras de Foucault. E esta análise sobre o exercício ético não estava prevista no projeto original da História da Sexualidade. Foucault chega a considerar as análises sobre os poderes e saberes na constituição da sexualidade presentes no volume I insuficientes para se entender todas as dimensões do dispositivo da sexualidade. Era necessário fazer uma ‘genealogia do desejo’, pôr a noção de desejo, tão importante para o dispositivo da sexualidade, em análise, elaborar uma analítica do sujeito.

Tais inflexões, que, segundo Souza Filho (2008), permeiam toda a obra de Foucault, provocaram a construção equivocada e fácil da imagem dos vários Foucaults: o Foucault estruturalista; o Foucault analista do poder; o Foucault da constituição do sujeito. Para Souza Filho (2008), devemos pensar Foucault mais como pensamento que se move do que pensamento com momentos estanques. As questões da liberdade e do exercício ético sempre permearam, com outras intensidades, as obras de Foucault. Mesmo àquelas sobre o poder e suas instituições.

Em relação às identidades, apesar de ser um crítico da política de identidades de grupos minoritários, Foucault não estava tão longe de formular a noção de uma “identificação estratégica”. Para o filósofo francês, os discursos de minorias sexuais ou os discursos “emancipatórios” como a teoria psicanalítica de Reich e o freudo-marxismo de Marcuse, que postulam uma romantizada ‘liberação sexual’, a busca de uma essência sexual primária anterior ao poder ou uma “verdadeira identidade sexual”, possuem como referências as categorias do dispositivo da sexualidade que as sujeitam, mas não podem ser considerados iguais aos discursos de poder em seus efeitos:

Acho que movimentos ditos de ‘liberação sexual’ devem ser compreendidos como movimentos de afirmação ‘a partir’ da sexualidade. Isso quer dizer duas coisas: são movimentos que partem da sexualidade, do dispositivo da sexualidade no interior do qual nós estamos presos, que fazem que eles funcionem até seu limite; mas ao mesmo tempo, eles se deslocam em relação a ele, se livram dele e o ultrapassam (FOUCAULT, 1979, p. 233).

O trecho acima nos remete à idéia de resistência enquanto deslocamento discursivo que se opera no interior dos dispositivos de poder, como acentua Butler (2008) e Preciado (2008). Mas, nos remete também ao movimento de “ultrapassar” as categorias do poder, ao “fora” que Butler tende a encarar como ilusão romântica, mas que nós podemos compreender – lembrando da dimensão molecular frisada pela micropolítica de Deleuze & Guattari (1996) e Rolnik (1997) – como campo das intensidades e forças que ainda não se atualizaram e que os exercícios de poder em nós reprime 2 .

Deleuze (1993), no artigo “Desejo e Prazer”, enfatiza os efeitos repressivos do poder que a obra de Foucault permite vislumbrar, mas que não foi tão enfatizada, pois Foucault estava mais preocupado em desfazer a fácil imagem do poder-repressão e sublinhar a idéia de poder-produção. Mas, apesar do caráter produtivo do poder, nem mesmo Foucault negou os seus efeitos repressivos, quando, em entrevista, se posicionou sobre o efeito das produções de poder sobre a sexualidade das crianças e adolescentes, particularmente a campanha médica do século XIX contra a masturbação infantil, que se por um lado inventou a figura do masturbador contumaz-poder-produção, por outro limitou o campo de possível da sexualidade infantil-poder-repressão (FOUCAULT, 1979, p.231-232).

Se as produções do poder possuem efeitos repressivos, pressupõe-se que o poder não abarca o real em sua totalidade como nos faz crer Butler (2008) – se o poder reprime, atua sobre algo que lhe é exterior - há uma dimensão do real, um “fora” que é impedido de passar, de se atualizar, devido aos exercícios de poder.

Não podemos pensar a resistência como força exterior aos exercícios de poder, mas como força que se gesta de “dentro”, pois como salienta Souza Filho (2008), o poder em sua dinâmica incita a resistência, ou seja, não há exercício de poder sem resistência. Por outro lado, não podemos esquecer que essa resistência, este exercício de deslocamento pode se intensificar de tal forma que as categorias de poder podem ser ultrapassadas e outros modos de pensar e viver se afirmarem. E quem sabe, numa “não identidade” como quis Foucault.

Os discursos queer e as questões que suscitam são fundamentais para se pensar minorias e produção de resistência no contemporâneo. O modo como Butler (2008) e Preciado (2008) lidam com o conceito de identidade e de gênero, as possibilita acompanhar as movimentações contemporâneas das minorias sexuais que certas leituras ditas anti-identitárias teriam mais dificuldades. A questão é que não considero haver incompatibilidades entre esta postura queer e o pensamento de Foucault como as autoras anteriormente citadas gostam de demarcar. Minha experiência de leitura de Foucault ainda não conseguiu vislumbrar uma posição dogmática anti-identitária em sua obra.

Até porque, o que caracteriza o espírito do pensamento do filósofo francês não é a utilização de certos conceitos – como resistência, dispositivo, poder ou subjetividade - e a ojeriza a outros – como identidade ou gênero. O que garante a força foucautiana, em nosso pensamento, é estarmos abertos ao exercício ético de se perguntar: o que estamos ajudando a funcionar? Como estamos nos constituindo no contemporâneo? O que podemos fazer para produzir um modo de vida mais belo e ético?

1 -
As produções teóricas de Deleuze, Guattari e Rolnik - que também se referem a obra de Foucault como condição de emergência - enfatizam a existência de uma dimensão da realidade que se constituiria de um campo de forças e afetos que denominam de plano molecular do real. Apesar de ser “invisível” (ROLNIK: 1997) o plano molecular do real não só constitui as forças e afetos que se atualizaram, ou seja, ganharam forma e sentido, como as forças que ainda não se atualizaram, mas que circulam pelo campo social e desestabilizam os modos de vida já constituídos. Ou seja, o plano molecular seria o “fora” das categorias e estratificações do poder. O “fora” pede passagem e nos convida a criar novos estilos de vida. Neste sentido, resistência seria não apenas se apropriar das categorias do poder e produzir outros efeitos; resistência seria também “escapar”, estar em deriva, em “devir”, criar novos modos de vida que não flertam com as categorias de poder, apesar de possuir como efeito o seu deslocamento.

2 - GLS: Gays, lésbicas e simpatizantes; GLBT: gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (transexuais e travestis); LGBTT: lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis; LGBTI: lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (décadas atrás conhecidos como hermafroditas). Para muitos movimentos de minorias a ordem da letra possui um sentido político: retirar o “s” pois não existem simpatizantes e sim “enrustidos”; o “l” de lésbica na frente para quebrar a supremacia masculina; inserir dois “Ts”, pois a condição de transexual é diferente da travesti; o “i” para transformar o antigo hermafrodita em sujeito político e não em uma categoria clínica etc.


REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 153 a 172.
____________. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 2. ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996.
____________, Gilles. Desejo e Prazer. Tradução: Luiz B. Orlandi. IN: PEALBART, Peter. Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC-SP, v.1, n.1, p.57-65, 1993.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 3 ed. Rio de janeiro: ed. Graal, 1979.
____________. História da sexualidade I: a vontade de saber. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
____________. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2009.
____________. Ditos e Escritos: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
LOURO, Guacira L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria “queer”. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
MISKOLCI, Richard. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, v. 1, n. 29, 2009, p. 150-182.
PRECIADO, Beatriz. Multidões “queer”: notas para uma política dos “anormais”. Disponível em: www.intersexualite.org/MULTITUDES_”QUEER”.pdf>. Acesso em 13 Jul. 2008.