quarta-feira, 22 de outubro de 2008

As travestis e o “gênero na margem”: algumas reflexões

Texto publicado nos anais do III Congresso Capixaba de Formação e Atuação do Psicólogo, ocorrido entre os dias 24, 25 e 26 de setembro de 2008, na Universidade Federal do Espírito Santo. O evento foi realizado pelo PET de Psicologia da Ufes. A psicóloga Rebeca Valadão Bussinger (autora do texto abaixo), juntamente com o integrante do Plur@l Luiz Cláudio Kleaim, foram os facilitadores do Grupo de Discussão - Diversidade Sexual e suas Lutas.


As travestis e o “gênero na margem”: algumas reflexões


Rebeca Valadão Bussinger *


O texto a seguir apresenta um panorama de primeiras reflexões acerca do sujeito travesti. Enfocamos aspectos que, fundamentados em produções teóricas e científicas, ressaltam a emergência de elementos indispensáveis a uma primeira tentativa de análise. O contexto da rua, o significado da avenida, a violência como linguagem, a prostituição, a transformação do corpo e outros. Ao fazer um recorte de elementos tão complexos para o grupo trans, certamente, os conceitos subjacentes a tais elementos não serão esgotados aqui. Pretendemos, agora, lançar ao debate acadêmico algumas reflexões, resultado de produções de acadêmicos e intelectuais que tem enriquecido as discussões em torno de questões referentes ao corpo, gênero e sexualidade.


Na busca pela definição do sujeito travesti encontramos, também associadas às expressões da travestilidade, algumas outras formas manifestadas por indivíduos e /ou grupos para relacionarem suas vivências de corpo, gênero e sexualidade. Consideramos importante discorrer, mesmo que de forma breve, sobre como têm sido traduzidas as experiências de drag queens e transexuais.


Chidiac & Oltramari (2004) afirmam que as drags apresentam-se em seu cotidiano como homens (gestos, roupas e comportamentos entendidos como do âmbito da masculinidade) manifestando e caracterizando a feminilidade nas personagens que criam e representam. Desta forma, apresentam uma modalidade mais flexível de travestilidade, manifestando o gênero feminino em suas performances e mantendo-se masculinos em seu dia a dia. A análise dos autores apontam que, quando “montados”1 as drags unem características físicas e psicológicas masculinas e femininas em um único corpo, atitude que relativiza a tendência a essencialização no conceito de identidade.


Já a transexualidade pode ser definida num primeiro momento como sentimento de não correspondência ao sexo anatômico, sem delírios ou causas orgânicas, apontando para uma incomunicabilidade entre corpo, sexo e gênero. Pode ser diagnosticada como patologia, e adquirir status de psicose pelas ciências médicas, em específico a psiquiatria (ARÁN, 2006, p. 02).


A partir da década de 50, surgem publicações que nomeiam a especificidade da experiência transexual. A construção do saber em torno da transexualidade tem a medicina como seu principal aliado, de forma que esta estabelece uma nomenclatura oficial para definir pessoas que vivem uma “contradição” entre corpo e subjetividade. Desta forma, as ciências médicas atuam na legitimação da divisão binária dos gêneros – a determinação da sociedade composta de homens e mulheres - naturalizando identidades e hierarquias geradoras de exclusão. Nesse contexto, o hospital se torna o lócus privilegiado do trabalho de “assepsia de gênero”2 (BENTO, 2006).


Se buscarmos uma analogia com a definição de transexual apresentada acima, veremos que as travestis nascem com a genitália masculina e, por isso, a maioria se auto-define como homem. No entanto, procuram mudar seus corpos inserindo neles símbolos do que é socialmente entendido como feminino. Não apresentam desejo pela cirurgia de transgenitalização (mudança de sexo), pois geralmente convivem com sua genitália, sem maiores conflitos. Preferem se relacionar sexual e afetivamente com homens, mas não se identificam com os homens homo-orientados, os gays (PELÚCIO, 2006, p.03).


Pelúcio (2007, p.09) observa que a entrada no mundo travesti se dá com a ingestão de hormônios. E completa: “[...] se o hormônio é a feminilidade, o silicone é a dor da beleza”.


O processo de tornar-se travesti pode ter início quando:


[...] se inicia com extração de pêlos da barba, pernas e braços, afina a sombrancelha, deixa o cabelo crescer e passa a usar maquiagem e roupas consideradas femininas nas atividades fora do mundo da casa. A seguir, começam a ingestão de hormônios femininos (pílulas e injeções anticoncepcionais e/ou de reposição hormonal), passando por aplicações de silicone líquido nos quadris e, posteriormente, nos seios, até chegar (e nem todas podem fazê-lo por absoluta falta de dinheiro) a intervenções cirúrgicas mais radicais – plástica no nariz, eliminação do pomo-de-adão, redução da testa, preenchimento das maças do rosto e colocação de prótese de silicone (PELÚCIO,2005, p.04).


Na mesma direção, Benedetti (2005) coloca a decisão pela iniciação do uso de hormônios como uma das mais importantes na vida das travestis. Iniciam este processo ainda na adolescência, pois acreditam que as mudanças da puberdade possibilitam a instauração da condição feminina de forma mais eficaz. O autor observa que o hormônio simboliza o início da construção da identidade travesti. Após o hormônio, o processo continua com a aplicação de silicone. Tal procedimento é geralmente realizado de forma caseira e por uma travesti mais velha. A clandestinidade, embutida na maioria das aplicações de silicone, expõem a total ausência de controle sanitário nesse processo. As travestis consideram os pêlos, principalmente os da barba, o signo que mais representa o masculino, e não poupam empenho na tentativa de eliminá-los por completo. Se a ingestão de hormônios inicia de forma mais marcante a transformação do menino em travesti, os corpos “siliconados” são igualmente valorizados pelo grupo, que suporta a dor intensa oriunda de um procedimento realizado sem anestesia.


A ingestão de hormônios e as aplicações de silicone não findam o processo de tornar-se travesti. A transformação envolve dedicação constante na busca pela susbstituição de comportamentos, signos e gestos entendidos como masculinos na apreensão do feminino. Benedetti (2005) define o feminino das tavestis como diferente do feminino das mulheres, pois as travestis não abdicam totalmente de características masculinas. Transitam por esses dois pólos, masculino e feminino, e optam por um ou por outro de acordo com cada contexto ou situação. Segundo Pelúcio (2006, p.03), as travestis “[...] buscam agir, em muitos momentos, segundo prescrições de comportamentos instituídos como femininos, sem esquecerem, em contextos específicos, que dentro delas mora um rapaz [...]”. Benedetti (2005, p.100) enfatiza o processo de construção do feminino travesti em oposição à socialização e à educação que estas receberam enquanto homens e caracteriza este momento como uma vivência “dura, solitária, de enfrentamento e sofrimento”.


Em oposição às transexuais, para quem a separação entre masculino e feminino é bem demarcada e buscam atuar sobre um código rígido de diferenças de gênero, as travestis adquirem, como uma de suas principais características, a ambigüidade.


As travestis não desejam ser como as mulheres. Seu objetivo, antes, é se sentirem femininas. Vivem a experiência do gênero como um jogo artificial e passível de recriação. Por isso, criam um feminino particular, com valores ambíguos. Um feminino que se constrói e se define em relação ao masculino. Vivem, enfim, um gênero ambíguo, borrado, sem limites e separações rígidas. (BENEDETTI, 2005, p.132)

É fato que travestis, transexuais e drag queens “brincam” com as dicotomias de gênero, mas a travestilidade implica mais nuances que apenas a força de problematizar categorias de identificação previamente impostas. Num apanhado do material estudado, encontramos dois campos de extremo significado para o grupo das travestis: a rua (e, consequentemente, a prostituição) e o corpo.


Em sua pesquisa etnográfica sobre travestis em Porto Alegre, Benedetti (2005) relata que estas, em sua maioria, são oriundas de famílias de baixo nível econômico3. O mesmo aspecto foi também observado por Pelúcio (2007) em sua análise sobre as experiências de conjugalidade no universo travesti. Tendo em vista que o processo de transformação inicia-se ainda na adolescência, é recorrente o relato de maus-tratos, tentativas de medicação e tratamento por parte de suas famílias (BENEDETTI, 2005). Conforme aponta Pelúcio (2007, p.03): “A rua pode se apresentar como um ambiente de acolhimento quando meninos efeminados são violentados e colocados para fora dos espaços domésticos”. Segundo Benedetti (2005, p.102):

[...]deixar o lar parece ser um momento crucial em seu processo de construção. Quase todas fazem isso entre os 11 e 14 anos[...] Essas histórias costumam ser caracterizadas por muitas aventuras na rua, como dormir ao relento, mendigar, brigas, violência e embates com a polícia, bem como a descoberta de novos espaços e práticas.


Pelúcio(2006) corrobora a afirmativa acima, ressaltando que a saída de casa, ainda em pouca idade, seguida do apego ao mundo da rua, abre espaço para a atividade da prostituição, caracterizada como a principal fonte de renda e importante campo de representações do grupo. Lembramos que o rompimento com o espaço doméstico e com as experiências da infância fortalece e incentiva a jovem travesti a pôr em execução seus planos de transformação.


Benedetti (2005), Pelúcio (2007) e Ferreira (2003) apontam que a entrada da travesti no universo da prostituição depende, praticamente, de uma figura importante: a “madrinha”. Este personagem, geralmente uma travesti mais velha, cumpre o papel de cafetina para as jovens travestis e participam ativamente de seus processos de transformação, que só é possível de fato fora das casas de suas famílias.


Nos relatos das travestis sistematizados pelos autores, as madrinhas são responsáveis pela iniciação da travesti na prostituição. Tornam-se uma referência afetiva no grupo jovem por disseminar o conteúdo das experiências que adquiriram em suas vivências particulares destes momentos. Pelúcio (2006, p.04) observa que as travestis “[...] iniciam uma vida noturna sustentando-se pela prostiuição. Precisam aprender, então, a dar o truque: parecerem mais velhas, driblar situações de violência que podem advir tanto dos clientes quanto da polícia, e não raro de pessoas de seu grupo de convivência”.


A violência é naturalizada no universo travesti. Estas sofrem diariamente com a violência física e/ou simbólica, ações constitutivas de um cotidiano de discriminação e estigmatização. A cotidianidade do fato a transforma numa linguagem possível que, ainda que reprovada, é legitimada e banalizada no mundo trans. (BENEDETTI, 2005).


Pesquisa realizada por Carrara & Vianna (2006), no período de janeiro de 2000 a julho de 2001, através de análise de um dossiê produzido por ativistas do Grupo 28 de Junho4, mostra que as travestis são vítimas preferenciais da homofobia e é o grupo mais atingido por violência e discriminação.


Entre os resultados da pesquisa figura que as vítimas tinham idade inferior a 35 anos, 40% eram negros e pardos. Os assassinatos aconteceram em sua maioria na rua e por arma de fogo, características que sugerem crimes de execução. Ressalta que as vítimas apresentavam, na ocasião do crime, indicativos de cross-dressing5 o que nos faz citar a afirmação de Santos (1997, p.02): “A indumentária é um elemento simbólico fundamental na definição de nossas identidades, não só de classe mas também de gênero”.


Outro dado importante é a impunidade que perpassa a apuração dos casos, o que para os autores parece estar relacionada a “[...] um conjunto de fatores, entre os quais gênero e classe social, que se combinam para colocar as travestis entre os grupos socialmente mais desfavorecidos” (CARRARA & VIANNA, 2006, p.03).


A baixa resolução dos casos – principalmente quando associado aos crimes está a participação das vítimas no tráfico de drogas e/ou na prostituição – parece aumentar se consideramos a questão da ambigüidade de gênero. A não identificação das travestis num gênero “possível” (homem x mulher) impossibilita a localização deste grupo numa ordem simbólica socialmente reconhecida. Tal fato lança ao imaginário social - principalmente das instituições responsáveis por garantir a lei e a ordem - a idéia de desordem urbana provocada pelas travestis. Nesse contexto, figura a crença de que a verdadeira identidade de gênero está “oculta” (Um homem escondido? Uma mulher de mentira?). Daí decorre a dificuldade do grupo em assegurar sua defesa: a ambigüidade no gênero aparece relacionado à fatores que acentuam sua fragilidade: homossexualidade, prostituição, pobreza e tráfico.


Assim, o que poderia ser interpretado como crime de execução, traduz-se em ação de restauro da ordem, na medida em que:


A indiferença policial na apuração da maior parte desses crimes parece encontrar eco nas representações negativas de travestis como homossexuais especialmente desajustados, de modo que sua morte [...] tende a ser tomada por policiais como conseqüência de um modo de vida constantemente próximo da ilegalidade que é recebida com poucas pressões, sobretudo familiares, por sua apuração e por sua justiça (CARRARA & VIANNA, 2006,p. 07).


Mazzieiro (1998) destaca a regulamentação da prostituição, pela Academia Nacional de Medicina, em 1914, na cidade de São Paulo. O artigo resgatou os relatos de criminólogos, juristas, médicos e outros e seus discursos sobre a sexualidade julgada criminalizável e doentia na cidade de São Paulo, no período de 1870 a 1920. Na ocasião, o “sexo” se tornou questão da saúde investigado pela ciência e pela medicina a qual buscava a ordenação das condutas e a identificação de desvios e anomalias. Nesse contexto, a prostituição caracterizou-se como doença social passível de ser tratada através de seu reconhecimento e não de sua extinção. A intenção era manter a saúde da burguesia e as condições de produção da classe trabalhadora e, de certa forma, foi atribuído à medicina o exercício do controle da sexualidade e o esquadrinhamento dos corpos, o que resultou na associação da sexualidade à criminalidade. Para o autor:


A escolha de uma sexualidade que não fosse a reverenciada como normal, além de ser julgada crime, era considerada causa de outros crimes. Esses invertidos foram vistos como extremamente perigosos, principalmente os prostitutos[...] A prostituição masculina, entendida como muito pior que a feminina, devia, portanto, ser reprimida de forma ainda mais eficaz. Não se via nessa prostituição uma forma de trabalho e procura de satisfação sexual, e sim um crime. A homossexualidade masculina foi a forma de sexualidade em relação à qual a visão dos criminólogos esteve mais enraizada na visão da Psiquiatria, onde buscaram as origens da criminalidade (MAZZIEIRO, 1998, p. 13).

Oliveira (1997) e Ferreira (2003) identificam no contexto urbano o principal lócus de construção e socialização do sujeito travesti. É na avenida e na rua que se tornam visíveis e estabelecem suas relações, ainda que a “pista” seja um espaço de perigo e exposição à violência. Pelúcio (2007) aponta que o risco6 faz parte do cotidiano de muitas travestis que compuseram sua pesquisa. Num enfoque acerca da AIDS, a pesquisa mostra que a possibilidade de contrair o vírus HIV nem sempre é o risco que mais as preocupa. A autora coloca que a tentativa, por parte do poder público de acolhimento de travestis através de programas de prevenção de DST's, acaba por revelar um efeito perverso, visto que:


Nesses nebulosos lugares de fronteira que são a noite e a rua, as travestis que se prostituem negociam formas de se fazerem visíveis, possíveis e respeitáveis. Quando os programas de prevenção as interpelam nesses ambientes, mais um dos tanto paradoxos que cercam suas vidas aparece: o que se oferece a elas como direito civil e humano virá estreitamente ligado à AIDS, mantendo-as como pessoas associadas à patologia e ao desvio (PELÚCIO, 2007, p.10).


Ainda que a prostituição constitua um campo importante de aprendizado, troca e socialização das travestis, entendida como possibilidade de trabalho, ascensão social e conquistas materiais, ela não traduz os projetos de vida delas, que ganha contorno nas palavras de França (2006, p.06) quando destaca os reais “[...]anseios de inclusão social das travestis: marido, peito e dinheiro7”.


O dinheiro relaciona-se às necessidades de sobrevivência, impostas pelas condições de vida, e a possibilidade de ascensão social por conseguirem desfrutar do status de consumidoras – o que é fundamental para o processo de construção do feminino, na medida em que podem comprar roupas, adereços, hormônios e silicone. Além disso, “ter dinheiro” faz com que se tornem admiradas pelas famílias que as rejeitaram e possibilita a garantia de sustento dos “maridos”8, fato corriqueiro em suas relações. (FRANÇA, 2006).


Maluf (2002) propõe uma análise do filme “Tudo sobre minha mãe” do cineasta Pedro Almodóvar. Acredita que a escolha do cineasta por personagens com experiências na margem se dá pela condição peculiar que eles possuem de revelar os mecanismos de poder naturalizados no meio social. No filme, o personagem travesti Agrado revela o processo de construção do seu corpo e seus significados. Na visão da autora, o corpo de Agrado só ganha existência na experiência adquirida pela transformação, e desta, para o nascimento de Agrado enquanto sujeito. É no processo de transformação do corpo que o desejo de ser “outro” ganha concretude, “corporalidade”9, fato que questiona o caráter de natureza do corpo. O corpo não aparece absoluto, mas, sim, como processo, sentido da experiência.


Podemos pensar, ainda, que a experiência da Agrado de Almodóvar, ao revelar “a verdade sobre seu corpo”, pode ser demarcadora das experiências das travestis brasileiras habitantes do contexto cultural urbano. Os sentidos atribuídos ao corpo pelas travestis revela tensões entre as identidades sexuais e identidades de gênero o que coloca o grupo numa posição privilegiada pelo uso desestabilizador e provocativo que fazem das categorias mencionadas.


A experiência corporificada de “tornar-se outro”, ao mesmo tempo que dramatiza os mecanismos de construção da diferença, não deixa de ser um empreendimento anti-hierárquico que desestabiliza as políticas dominantes da subjetividade. Pensar essas experiências de margem talvez nos ajude a repensar o conceito de gênero, seus limites e potencialidades, tanto no campo analítico como no político (MALUF, 2002, p. 151).


A partir do corpo, a visibilidade social das travestis é conquistada através do domínio e da criação de uma verdadeira tecnologia, fundamentada nos conhecimentos da medicina (BENEDETTI, 1998). Numa reflexão ligeira, apropriando-se do que foi exposto até aqui, podemos supor que o mesmo poder desestabilizador que descortina as identidades sexuais e de gênero é utilizado pelas travestis em relação às ciências médicas e biológicas. Na intenção de controlar e esquadrinhar os corpos, a medicina criou um aparato tecnológico apropriado pelas travestis e utilizado por estas em sua face mais transgressora: a de questionar as verdades impostas por estas ciências e suas descobertas.


Basta retomarmos Bento (2006), que situa, na segunda metade do século VXIII, a função assumida pela ciência, de delimitação das diferenças anatômicas e fisiológicas entre os sexos a fim de diferenciar homens e mulheres. É a partir de então, que a ciência torna-se incumbida da tarefa de descobrir o sexo verdadeiro de cada corpo. A medicina, na busca da superação das ambigüidades, intensifica, no século XX, seu trabalho de “assepsia de gênero”10, que tem como principal alvo, os transexuais e hermafroditas. Segundo Reyes (2005,p.174):


[...] se establecieron dos categorías a partir de las cuales se organizó el mundo en lo feminino y lo masculino, asignándoles roles distintos en función de las expectativas que se formaron em torno de ellos. De ahí que se vaya tejiendo una red de significados sociales para cuerpo, género y sexualidad.


A categoria gênero aparece como um conceito que, visando assinalar as diferenças entre os sexos, revela as desigualdades construídas entre homens e mulheres. Para Bento (2006), as identidades de gênero fundamentam-se numa estrutura plástica e manipulável: o corpo. A idéia de estabilidade nas identidades de gênero, baseada na crença disseminada no meio social de que existem homens e mulheres, em relação de extrema oposição, e separados por diferenças marcantes e visíveis, só pode se realizar em sua aparência de gênero.


Judith Butler (2007, p.154) apresenta o caráter performático do gênero, ao afirmar que feminino e masculino não são entidades naturais, mas códigos inscritos sobre o corpo, o qual tentar responder à matriz heteronormativa das sociedades. A autora questiona a suposta materialidade do gênero e afirma que o que existe são expectativas, suposições que são cotidianamente apresentadas e reiteradas pelos indivíduos e grupos para atender ao “ideal regulatório”11. Assim, Butler (2007) apresenta o caráter instável do conceito em questão, e continua: “[...] a performatividade deve ser compreendida não como um 'ato' singular ou deliberado, mas ao invés disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual os discursos produz os efeitos que ele nomeia.”


As identificações não revelam um todo estável. Ao contrário, é, justamente, pela necessidade contínua de reiteração, de reapresentação dos discursos sobre os gêneros que as instabilidades se revelam e a eficácia da matriz reguladora é questionada. As associações entre gênero e sexo são produzidas a partir de operações de exclusão em que as combinações reconhecidas serão somente aquelas que a heterormatividade pode decifrar. Mas é nas instabilidades dessas combinações que se encontram “[...] a possibilidade desconstitutiva no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos pelos quais o 'sexo' é estabilizado, a possibilidade de colocar a consolidação das normas do 'sexo' em uma crise potencialmente produtiva (BUTLER, 2007,p.164).”


* Psicóloga, mestre em Psicologia. Coordenadora do Programa Família Acolhedora e Assessora de Programas de Acolhimento Institucional da Secretaria Municipal de Assistência Social de Vitória.


1 Gíria bastante utilizada por transexuais, travestis e transformistas para definir o ato de travestir-se, ou seja, apropriar-se de indumentárias, gestos e comportmentos do sexo oposto.

2 Expressão cunhada pela autora para expressar a tentativa de superação das ambiguidades pela medicina.

3 Não encontramos, na revisão bibliográfica realizada para este trabalho, um aprofundamento a respeito desta questão

4 Os dados levantados e analisados pelos autores são de assassinatos ocorridos no Rio de Janeiro entre as décadas de 70 e 90.

5 Numa tentativa de tradução, poderíamos entender como o ato de travestir-se propriamente dito.

6 Optamos por não aprofundar a discussão em torno do conceito de risco neste espaço.

7 Grifo nosso.

8 Nomeação criada e utilizada pelas travestis em relação à seus parceiros.

9 Expressão utilizada por Maluf (2002).

10 Bento (2006, p. 68).

11 Butler (2007) apud Foucault.


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