quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Dando um caldo para uma boa sopa de letrinhas

Texto publicado nos anais do III Congresso Capixaba de Formação e Atuação do Psicólogo, ocorrido entre os dias 24, 25 e 26 de setembro de 2008, na Universidade Federal do Espírito Santo. O evento foi realizado pelo PET de Psicologia da Ufes. O integrante do Plur@l Luiz Cláudio Kleaim foi um dos facilitadores do Grupo de Discussão - Diversidade Sexual e suas Lutas, juntamente com a psicóloga Rebeca Valadão Bussinger.


Dando um caldo para uma boa sopa de letrinhas: apontamentos e questões da diversidade sexual e de cidadania


Luiz Cláudio Kleaim

Plur@l – Grupo de Diversidade Sexual

Letras – Ufes


“Há um otimismo que consiste em dizer: de todo modo, isso não pode ser melhor. Meu otimismo consiste mais em dizer: tantas coisas podem ser mudadas, frágeis como são, ligadas a mais contingências do que necessidades, a mais arbitrariedades do que evidências, mais a contingências históricas complexas mas passageiras do que a constantes antropológicas inevitáveis.. .”


Michel Foucault, “Est-il donc important de penser?” (Entrevista a D. Eribon), 1981.


O presente trabalho é dedicado para aquele outro que serei eu alguns anos depois e a todas as pessoas que participa(ra) m do Plur@l – Grupo de Diversidade Sexual. Visto que me foi feito um convite para participar neste evento do Grupo de Discussão “Diversidade Sexual e suas Lutas”, a fim de trabalhar as questões e demandas da diversidade e do gênero, articulei um texto de modo a respeitar minha atuação política construída na experiência enquanto participante do grupo acima citado, aliando o seu momento em se pensar enquanto entrelugar e interface aos saberes do movimento LGBT e da academia.


Nesse sentido, busco asseverar que não se trata de uma fala uníssona do/no movimento LGBT, posto que possuímos muitas coisas em comum. Pelo contrário, as semelhanças que nos unem são tantas, tal como o são as diferenças que se estabelecem quando se juntam essas letrinhas. E é partindo dessa diferença – desse in-cômodo –, percebida pelo Plur@l durante esses quase cinco anos de atuação, e dessa fronteira de onde parto.


Para tal, confeccionei um texto-fala, já que a presente discussão se baseia em dois aspectos importantes para os diversos sujeitos da democracia liberal: voz e espaço. De certa forma, a sociedade moderna cria / privilegia determinados lugares e posicionamentos como de prestígio e de importância social. E a insurgência da fala desses sujeitos queer (1) se faz no sentido de saírem de sua invisibilidade social ao mesmo tempo em que afirmam sua experiência enquanto diferença. Isto acontece na arena pública, quando esses sujeitos se autorizam a falar sobre cultura, sexualidade e gênero a partir de suas vivências e de sua história, confrontando o instrumental masculino, heterossexual e branco do saber acadêmico.


Entretanto, é por uma vontade de ultrapassar essa lógica dicotômica heterossexual x homossexual que me interessam também aqueles/as que ainda não se encontram nominad@s, aqueles/as que trafegam ambigua e fluidamente pelos diversos lugares. É por eles e elas que penso estarem voltados nossa política e nosso discurso. Nesse aspecto, tento problematizar minha fala para lançar questões da sexualidade (e da teoria queer) em determinado momento. Em seguida, perfaço breve panorama do movimento LGBT, sua luta por cidadania e o contexto em que o Plur@l surge, bem como do modo pelo qual essa perspectiva tem se estabelecido na dinâmica do grupo e na maneira como nos temos (com)portado ultimamente.


Dessa forma, o primeiro título, Teoria(s) e Nós, traça um percurso em expansão sobre o emprego do conceito de gênero na análise da sexualidade, influenciada pelas leituras pós-estruturalistas e da teoria queer. Para se entender o contexto no qual surge o Plur@l, é preciso estabelecer, no segundo título, um painel acerca da atuação do Movimento LGBT e suas Fases(?): Liberdade, Saúde e Cidadania. Após isso, no terceiro título, o relato de Como o Plur@l Surge? visa a pontuar como o grupo é criado e a forma como se insere nessa luta para depois, no quarto título, n’A teoria que nos faz, ou melhor, A Experiência Plur@lista, tecer algumas observações baseadas nas vivências do grupo.



Teoria(s) e Nós

Para muitos pensadores, o sexo está em toda parte. Ele exala, acomete, emana e se entrosa ao clima de nossas vidas, irrompendo limites e unindo pessoas de diversas idades, corpos, etnias, raças, gêneros etc. Porém, vivemos em uma sociedade que reprime o sexo, fazendo-nos falar dele o tempo todo. O Ocidente tem se marcado como cultivador do sexo e, ao mesmo tempo, repressor dele (FOUCAULT, 2001).


Diria Michel Foucault (1989) que “[...] a ação do poder sobre o sexo se faria pela linguagem ou por um ato de discurso criando, ao mesmo tempo em que se articula, um estado de direito. Fala, e é a regra.”. Para o pensador, o Ocidente inventou a categoria sexo e produziu uma verdade sobre ela. Uma verdade que produz, classifica, hierarquiza, regula e controla os corpos, “condenados a viver ou morrer em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT apud NAVARRO-SWAIN, 2000?).


Dos últimos anos para cá vimos surgir uma movimentada rearticulação entre sujeitos e objetos de conhecimento por meio das influências dos estudos feministas, gueis e lésbicos e dos estudos queer. Não se tratam aqui apenas de novos temas, mas sim de novos olhares e análises que, orientados no sentido de entender o ponto de encontro entre as práticas sociais, as instituições, os saberes e as relações entre os sujeitos, têm buscado descortinar o caráter preponderantemente masculinista, branco e heterossexual dos pressupostos que sustentam vários paradigmas.


A consolidação do conceito de gênero (2) se demonstrou como forte ferramenta de análise para a atuação das feministas, mas essa definição ainda se baseava num binarismo já nosso conhecido que versa sobre a “natureza” dada ao sexo e o caráter cultural dado ao gênero (social).


Judith Butler (2003), em Problemas de Gênero, lê que o gênero não está passivamente inscrito sobre o corpo como um recipiente sem vida. A descoberta da genitália de uma criança na barriga de sua mãe traz um rol de atitudes que serão preparadas para o seu nascimento e, principalmente, depois dele. Butler, via Scott, afirma que isso também embasa o que define gênero como algo que as sociedades criam para significar as diferenças dos corpos sexuados, em que a biologia é o início e o destino. A autora alerta que os significados do gênero agem como uma rede de interações discursivas de diversas instituições na produção de corpos-homens e corpos-mulheres. Quando o médico diz: “É uma menina!”, ele aciona uma tecnologia de gênero sofisticadamente heteronormativa que se realiza por meio de reificações e regulações desse corpo na exigência de seu destino heterossexual feminino. A arquitetura do quarto, o vestuário, os brinquedos, o comportamento de familiares, e o que se esperará dessa criança constituem exemplos deste dispositivo de sexo em ação, que começa a funcionar antes mesmo do nascimento dela.


Se perscrutarmos as diversas relações em que os significados do gênero estão envolvidos, podemos analisar gênero como uma arrojada “tecnologia social heteronormativa” , operacionalizada pelas instituições médicas, lingüísticas, domésticas e escolares na produção dos corpos com disposições heterossexuais “naturais”, ou seja, corpos-homens e corpos-mulheres. E será a heterossexualidade a matriz que agirá sob reiterações contínuas e proporcionará inteligibilidade a esses corpos e suas diferenças sexuais. Nesse aspecto, reiterar significa:


Que é através das práticas, de uma interpretação em ato das normas de gênero, que o gênero existe. O gênero adquire vida através das roupas que compõem o corpo, dos gestos, dos olhares, ou seja, de uma estilística definida como apropriada. São estes sinais exteriores, postos em ação, que estabilizam e dão visibilidade ao corpo. Essas infindáveis repetições funcionam como citações e cada ato é uma citação daquelas verdades estabelecidas para os gêneros, tendo como fundamento para sua existência a crença de que são determinados pela natureza (BENTO, 2006?).


Dessa forma, é perceptível que se encontra uma espécie de amarração, uma costura, ditada pelas “normas” no sentido de que o corpo reflete o sexo, e o gênero só pode ser entendido, só adquire vida, quando referido a essa relação. O gênero é o destino que se espera, mas o sexo é a norma.


A heteronormatividade , por sua vez, transmite a noção de que o gênero (social) é o espelho do sexo (biológico). Por meio dessa concepção, a sexualidade é construída de acordo com as disposições naturais. Em contrapartida, essa condição cai por terra quando a suposta “naturalidade” dos corpos é abalada pelo não paralelismo sexo-gênero:


O que nos leva a pensar que o sistema não é um todo coerente e, conforme apontou Butler (1999), são as possibilidades de rematerializaçã o, abertas pelas reiterações, que podem potencialmente gerar instabilidades, fazendo com que o poder da lei regulatória volte-se contra ela mesma, gerando rearticulações que apontem os limites da eficácia dessa mesma lei regulatória (BENTO, 2006?).


Um exemplo da não simetria entre sexo-gênero são as travestis e transexuais, que negociam deslocamentos entre os significados do gênero e o seu sexo anatômico. Além disso, os/as transexuais trazem à tona os limites de um suposto dispositivo dimórfico que as nossas instituições sustentam, pois questionarão a adequação dos seus corpos ao gênero com o qual se reconhecem e se identificam. Por conta das expectativas dos gêneros dos corpos, podemos perceber diversos processos de violência e abjeção a que sujeitos são submetidos e se submetem. São corpos abjetos, pois cruzaram a fronteira do que é “natural”, normal, inteligível e humano.



Movimento LGBT e suas Fases(?): Liberdade, Saúde e Cidadania

O contexto de abertura política, pelo qual o Brasil passava nos fins da década de 70, trazia a possibilidade de as organizações e agrupamentos, que viviam clandestinos até então, funcionarem mais às claras. As influências das manifestações de 68-69 ainda se faziam bem presentes nos vários contextos políticos, sociais, artísticos e culturais no que se referiam às contestações quanto aos valores vigentes. A ditadura de 64 havia arrefecido os ânimos dos movimentos sociais no Brasil, mas não os eliminou, exigindo-lhes outras estratégias.


1978, catorze anos depois, com o incipiente processo de abertura democrática, os movimentos de mulheres e de negros voltam e retomam suas bandeiras de lutas, mesmo ainda encontrando pouco respaldo entre os grupos político-partidá rios da direita e da esquerda, que consideravam essas lutas secundárias com relação ao desenvolvimento econômico do país e à peleja pela mudança de classes.


Os movimentos de mulheres e de negros proporcionaram uma reviravolta, por conta de suas problemáticas individuais, no pensamento classista de esquerda da época. Suas bandeiras fizeram emergir, a partir das questões até de ordem privada, a heterogeneidade “mal resolvida” no movimento de luta supostamente igualitária dos trabalhadores. Esses movimentos insurgentes trouxeram para a arena pública a questão da intimidade contra a norma heterossexista branca, manifestada, inclusive, no movimento social. Essas mesmas questões de vertente individual marcaram o aparecimento do movimento homossexual.


Além disso, segundo o historiador James Green, havia uma conjuntura econômica e social, como a urbanização e o destaque de grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, que possibilitou uma pré-movimentaçã o dos homossexuais. De acordo com o pesquisador:


Nesses ambientes das grandes cidades criam-se, a partir de 1951, as primeiras boates e outros espaços particulares para gays – e eventualmente lésbicas –, como os bailes de carnaval e redes sociais de amigos, os quais criam uma identidade para além de uma individualidade. Ou seja, uma rede social que cria uma noção de que temos alguma coisa em comum, somos todos bichas, somos todas sapatões, temos uma série de vivências que são similares e enfrentamos questões parecidas. Havia também uma conjuntura internacional conjugada às mudanças de gênero aqui no Brasil: mais mulheres da classe média indo para a universidade, mais empregos para mulheres que se tornavam independentes da família. E muitas influências culturais, como o tropicalismo, em nível nacional, e, internacionalmente, a cultura hippie e o rock, que vão questionando, em certo sentido, as questões de gênero e o comportamento masculino e feminino, oferecendo alternativas de construção do gênero diferentemente dos padrões rígidos construídos nos anos após a Segunda Guerra Mundial. Foi essa conjunção de condições sociais, de sociabilidades e mudanças culturais na sociedade que abriu a possibilidade do surgimento de um movimento político (GREEN, 2008).


No olhar de Green, seria possível observar três fases do movimento homossexual (hoje LGBT) brasileiro. Essas fases possuem alguns eventos como seus marcos. O primeiro seria o ano de 1978 em que surgiam o Jornal O LAMPIÃO e o Grupo Somos, grupo este que elaborava um novo discurso para confrontar a rigorosa estrutura social e a política vigente do país, a fim de produzir transformações significativas na sociedade. A partir daí, aconteceram manifestações de luta por respeito e saída da invisibilidade social sob a forma de participação nas movimentações que ocorriam no país, como os protestos de greve dos trabalhadores do ABC paulista, em 1980.


A formação do Somos se baseou numa “atitude de afirmação homossexual” que “se manifestava na constante reiteração pública ou privada dessa orientação sexual e na tentativa de mobilização em defesa daqueles identificados como homossexuais no tocante ao respeito aos seus direitos de cidadania” (MacRAE, 1990). A utilização dessa estratégia política vinha sub-repticiamente à consolidação de uma idéia de identidade homossexual (não homogênea) composta de múltiplos perfis, os já conhecidos e os emergentes (bichas, bofes, sapatões, entendidos, gueis, lésbicas etc.).


O segundo e o terceiro marcos seriam, respectivamente, a Parada do Orgulho de São Paulo e a I Conferência Nacional GLBT, em Brasília. Nesse processo, seria possível perceber um caminho modulado: o movimento surge inserido na luta dos trabalhadores, na positivação de uma suposta identidade homossexual e na dinâmica pela liberdade sexual. Entretanto, esse fluxo sofre um freio com a epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – Sida. Esta seria a nuance de sua segunda fase, aproximadamente nos idos de 83: com o desaparecimento da maioria dos grupos homossexuais e, com a inserção de muitos de seus militantes, a formação de grupos e ONGs de conscientizaçã o e combate à Sida.


O fato de a doença ser marcada como manifestação decorrente de uma prática homossexual requereu dessas entidades a reunião de esforços e pesquisas no sentido de formular ações (e, posteriormente, políticas) que amparassem a população de BGILTTT (3) quanto à conscientizaçã o e à prevenção da doença. A mudança, no decorrer do tempo, do termo “grupo de risco” para “práticas de risco” se deveu em grande parte ao aspecto de transformação no comportamento da sociedade, muitas vezes, ou quase sempre, motivada pela atuação dessas entidades e do Governo.


A divulgação de várias pesquisas sobre a Sida que mostravam a ascendência na contaminação da população de mulheres heterossexuais, bem como do caráter de pauperização da doença (4), contribuiu para desconstruir a idéia de doença de gueis. Dessa forma, outro termo, o de “vulnerabilidade social”, passou a ser utilizado nas políticas de saúde.


A essa altura, já na década de 90, a produção de estudos sobre os aspectos sociais da doença apresentaram a necessidade de ampliação de estratégias para o enfrentamento ao preconceito e à discriminação que vulnerabiliza( va)m a população de BGILTTT. Nesse sentido, o Congresso da International Lesbian and Gay Association – Ilga (1995), a primeira Parada do Orgulho de São Paulo (1997) e a formação da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais – ABGLT (1995) possibilitaram o fortalecimento dos grupos ainda existentes, bem como a formação de outros e a sua articulação em redes de apoio.


O ano de 2008 comemorou 60 anos de Declaração Universal dos Direitos Humanos e a realização da I Conferência Nacional GLBT. Este evento mobilizou não só lideranças e representações LGBT, mas foi capaz de envolver sujeitos que não faziam parte do movimento social organizado.


Nesse sentido, pela experiência de participação na versão estadual do evento acima, tendo(emos) a concordar com Carrara (2008) que estabelece dois modelos de propostas surgidas nas Conferências e que as permeavam: a) o de “separados, mas iguais”, em que eram pleiteadas políticas direcionadas à população, como a criação de delegacias LGBT, de uma Vara Criminal LGBT ou de serviços médicos especializados; b) o de “iguais e misturados”, que buscava não criar serviços específicos, mas de dar ênfase à capacitação de agentes e à complexificaçã o dos sistemas de atendimento para lidar com a população BGILTTT.


Analisando essas duas linhas, vê-se que elas são representativas da correlação de forças entre a afirmação identitária e a complexidade das relações humanas, envolvidos aí diversos outros elementos, como o econômico, cultural, político, religioso etc., além da característica paternalista do estado brasileiro.



Como o Plur@l Surge?

Passados quase trinta anos do surgimento do Grupo Somos, vemos nas universidades do país a formação de grupos e núcleos universitários que ensejam discutir as questões da sexualidade. No contexto capixaba, o Plur@l – Grupo de Diversidade Sexual surge em 2004 a partir da constatação de que o ambiente universitário era carente de uma discussão sobre o tema da diversidade sexual. Essa carência foi percebida por meio da nossa participação em encontros e fóruns do movimento social local, bem como da inquietação causada pelo caráter folclorizado da parada do orgulho guei de Campo Grande.


Paralelamente, a luta do movimento de mulheres passava por outros tempos e as teorias feministas já inauguravam uma nova fase de análise das relações de opressão. Enquanto que a obra de Michel Foucault se consolidava no meio acadêmico como instrumental estratégico no campo da diversidade sexual e do gênero, a Teoria Queer também tomava força em algumas universidades brasileiras.


É dentro dessa investida que o Plur@l, formado por estudantes de diversos cursos da Ufes, (cada um/a lendo alguma faceta da sexualidade a partir da perspectiva teórica de seu curso (ou curso afim) e compartilhando suas discussões com @s demais) surge com seu caráter político-acadê mico e buscando discutir as questões em torno do tema.


A opção pela diversidade sexual se mostrava a mais pertinente, uma vez que ensaiávamos estabelecer uma discussão relacionada à necessidade de problematizar as relações de opressão entre homens e mulheres, mulheres e mulheres e homens e homens. Além disso, dessa forma poderíamos expandir a política de apoio às expressões que não a heterossexual com os próprios heterossexuais, retornar a aliança entre feminismo e as questões de liberação sexual, superar / ultrapassar a limitação em discutir homossexualidade e saúde, que o poder público e as políticas públicas haviam se restringido, além de abrir brechas para possíveis outras maneiras de prazer.


Sua idéia inicial era a de se constituir enquanto um espaço em que houvesse a capacitação de seus/suas integrantes com leituras as mais diversificadas possíveis sobre sexualidade, gênero, corpo e afetividade. Entretanto, pelo fato de essas questões serem razoavelmente “novas”, não haver tantos grupos formadores de opinião no estado e a crescente demanda local por esse tipo de reflexão empurraram o Plur@l fazendo com que extrapolássemos os muros da universidade e nos tornássemos articuladores/ as de políticas voltadas para a população BGILTTT, junto com outr@s agentes e o poder público.


Nesse aspecto, não querendo menosprezar, mas aliar o saber acadêmico à prática política, organizad@s sob a forma de Programa de Extensão, constituímo-nos enquanto interface entre a Universidade e a sociedade no que tange ao assunto. Dessa forma, a experimentação e o mergulho em algumas atividades têm (nos) servido de leit motiv para pensarmos nossa forma de inserção nos vários espaços e de que modo contribuímos para sua transformação política com relação à temática da diversidade sexual e do gênero. Para ilustrar, ressalto o desempenho do grupo na construção (e a realização de uma) das edições do Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual – Enuds; nas nossas participações nos eventos de mobilização dos e respeito aos direitos da população BGILTTT e de outras instituições de ensino superior; nas intervenções junto ao movimento estudantil, a gestores, profissionais da educação e agentes dos serviços públicos e na interlocução com a mídia local, além da produção de produtos midiáticos.



A teoria que nos faz, ou melhor, A Experiência Plur@lista

De certa forma, a invenção do discurso da homossexualidade trouxe uma nova forma de disciplinar e regular nossos corpos e desejos, mas também serviu de instrumental estratégico no sentido de virarmos o jogo por parte dos sujeitos identificados enquanto tal. Foucault escreveu a respeito:


Deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes [...] É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta (FOUCAULT apud MacRAE, 1990, p. 35-36).


Foucault argumenta que onde há relações de opressão e de poder é porque se encontra ali uma força de resistência. O poder é polissêmico. A resistência também pode ser um processo criativo que se coloca em relação de enfrentamento da situação contra a qual ela se defronta. E se nos deparamos com resistência será porque existe potência. Considerando isso, pensar a sexualidade e os processos de conquistas de espaços como a realização de utopias é uma atividade de resistência, ou melhor, uma potência que eu diria heterotópica (5), pois se trata da constituição e da conquista de espaços outros a partir dos lugares em que os sujeitos ocupam. A transformação que acontece no campo da sexualidade está agindo dentro do próprio vocábulo “homossexual”, ou seja, da palavra que tomamos enquanto positivação e afirmação individual.


Contrariando muitas vontades, não intenciono(amos) traçar um argumento para demolir com a identidade. Julgo(amos) que ela pode ser muito importante para a organização política das pessoas no que ela tem de estratégia e artefato político, além de seu poder de mobilização. Mas também esboçando outra vontade política é que penso(amos) no seu caráter difuso e ambíguo e é na fluidez das suas fronteiras que me (nos) coloco(amos) .


Além disso, devido ao modo como nos constituímos grupo e por nos aguçarem as relações entre corpo, desejo e prazer que, muitas vezes, não recebem nominação ou não se afirmam identitárias ou, ainda, que se põem marginais em relação à norma, e ainda pensando no sexo enquanto possibilidade de uma vida criativa, é que percebo(emos) e espero(amos) novas formas de amor e de criação nas relações humanas.


Na oportunidade de organizar a I Parada do Orgulho LGBT de Vitória, em 2006, um rapaz homossexual me perscrutou o que significava homofobia. Este episódio me deixou descalço e incomodado, o que me fez ponderar sobre essas distâncias entre ativistas e não-ativistas. Por conta disso, na tentativa de romper com essas dimensões e inventar uma ação reflexiva, propus a colocar-me na posição de (re)pensar sobre como a atuação do grupo repercute na política (no público) e na vida (individual) de cada integrante, uma vez que éramos/somos tod@s diferentes dentro do grupo, com trajetórias muito distintas, mas que nos uníamos em torno de algo em comum.


Nós (o grupo) não optamos pela via terapêutica de discutir as questões da sexualidade. Porém, percebemos que, do contato e da convivência (muitas vezes, não harmônicas) das várias experiências e vivências de homo, bi e heterossexuais (ou outras formas não nominadas) dentro do grupo, das pessoas “resolvidas ou não” de seus afetos e expressões, algo de muito positivo foi possível acontecer na vida de cada participante. Algo de muito íntimo, que falava muito de nós, mas que era de difícil expressão e sistematização nos tornava cúmplices uns/umas d@s outr@s. E a possibilidade de não querer dar nome àquele afeto do qual não se tinha dimensão nem medida era importante para não limitar a experiência nos trâmites das categorias e conceitos, muitas vezes, vazios.


Sabemos que a sociedade contemporânea tem se capitalizado e se apropriado das identidades, usando os seus estilemas básicos e os pulverizando sob diversas formas de produtos compráveis e consumíveis ao gosto popular. Assim também, a individualidade preconizada e capturada enquanto indicativo da liberdade para consumir e de consumidor da sociedade capitalista tem estabelecido outras formas de associação e relacionamentos que execram a cumplicidade e a amizade. Por outro lado, também entendo(emos) que é por meio da sociedade de consumo que muitos sujeitos queer têm conseguido sobreviver.


Nessa perspectiva, julgo que o desafio hoje do movimento social organizado macro e micropoliticamente seja o de exigir dos governos o acatamento e a aplicação dos princípios da igualdade, da dignidade e da liberdade configurados, quanto ao nosso recorte, no respeito ao exercício de um direito da sexualidade para além dessa lógica narcísico-consumista . Contudo, e além disso, coloco(amos) a emergência da necessidade de potencializar( mos) a aproximação entre as supostas lideranças e os diversos sujeitos, aqueles/as que são representados ou não.


Nesse sentido, a experiência plur@lista nos tem impulsionado a refletir teoria, prática e realidade a todo o tempo e do modo como elas estão diluídas tanto em nosso funcionamento quanto quando elas se expressam nas faces / fases do movimento social e de nossas vidas. O desafio nosso de construir um discurso e uma prática que seja coletiva, singular, autônoma, disruptiva, possível e humana, muitas vezes, tem exigido de nós esforços no sentido de muitas vezes negociarmos intensamente a reflexão constante e / sobre as implicações que podem ocasionar determinada postura política.


Igualmente, a dinâmica da contemporaneidade e as demandas que o nosso exterior nos impõe, às vezes, conflitam com nosso tempo interno, revelando embates quanto ao próprio momento pelo qual o grupo passa em determinada ocasião.


Como refletido, a heteronormatividade não é um todo coerente. Nessa ótica, a experiência de atuação dos grupos sociais de mulheres, BGILTTT e até heteroqueers (6) tem se mostrado enquanto importante elemento de transformação da vida coletiva, seja no próprio fortalecimento da norma, seja no seu desmantelamento. E essa crível desnaturalização pode se dar na perspectiva de serem inventados espaços em que os sujeitos possam se / nos recriar. Espaços esses em que haja a constituição de estratégias que ressignifiquem nossas vidas e fortaleçam nossa memória.


Somos queer em alguma contextualização e sabemos que a diferença se estabelece na relação. Nossa luta não pode se esquivar desse alto valor atribuído à nossa diferença. Por isso, penso que nossa liberdade dentro dessa lógica heteronormativa reside na capacidade que temos de nos reinventarmos a partir do próprio vocábulo que nos interpelam.


Nesse sentido, o (res)surgimento da amizade e de uma vida criativa são elementos que não devem ser esquecidos e que subjazem a cumplicidade entre @s sujeitos queer dentro dessa norma heterossexual. Precária e contingente como é a vida, é necessário coragem para falarmos muito mais de sexualidade para, daqui a um tempo, podermos / poderem vivenciá-la com mais criatividade e leveza.


REFERÊNCIAS:

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: Sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

______. Corpos e Próteses: dos limites discursivos do dimorfismo. http://www.fazendog enero7.ufsc. br/artigos/ B/Berenice_ Bento_16. pdf. 2006?. Acesso em 10/10/2006.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero Feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos Del “sexo”. Traducción de Alcira Bixio. Buenos Aires: Paidós, 2002.

CARRARA, Sérgio. O que nos une (Entrevista) . http://www.clam. org.br/publique/ cgi/cgilua. exe/sys/start. htm?infoid= 4274&sid=43. Acesso em 30 de agosto de 2008.

FOUCAULT, Michel. “Des espaces autres”. In: Dits et écrits II. Paris: Gallimard, 1967, p. 1571-1581.

______. “Heterotopias” . In: Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Trad.: Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 411-422.

______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

______. Microfísica do Poder. 5. ed. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

GREEN, James Naylor. Movimento LGBT em Debate. http://www.clam. org.br/publique/ cgi/cgilua. exe/sys/start. htm?UserActiveTe mplate=_ES&infoid=4330&sid=21. Acesso em 30 de agosto de 2008.

______. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Trad. Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

MacRAE, E. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

NAVARRO-SWAIN, Tânia. Quem tem medo de Foucault? Feminismo, Corpo e Sexualidade. http://www.unb. br/fe/tef/ filoesco/ foucault/ . 2000?. Acesso em 20/04/2007.

POCAHY, Fernando Altair. A pesquisa fora do armário: ensaio de uma heterotopia queer. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social e Institucional. UFRGS. 2006.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, 1990.


Notas:

(1) Tradução: excêntrico, estranho, esquisito, bizarro. A teoria queer “tem procurado colocar a questão da sexualidade no centro das preocupações e como a categoria-chave segundo a qual outros fenômenos sociais, políticos e culturais devem ser entendidos. Pode-se enxergar a teoria queer, portanto, como a que explora os processos pelos quais a identidade sexual é, e tem sido, constituída nas sociedades contemporâneas e passadas. A sexualidade deve, por conseguinte, ser apresentada como uma atividade ou conquista significativa em contínua negociação e disseminação, e não como um mero fato natural (e sobretudo médico)” (EDGAR; SEDGWICK, 2003, p. 347-348).


(2) “Gênero deve ser visto como elemento constitutivo das relações sociais, baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, e como sendo um modo básico de significar relações de poder” (SCOTT, 1990).


(3) Bissexuais, Gueis, Intersexuais, Lésbicas, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Optei por essa ordem de letras na sigla em função da falta de consenso quanto a essa questão por parte do próprio movimento social identitário ao qual o acrônimo se refere. Isso acontece devido à afirmação e à busca de visibilidade por parte das lésbicas e travestis; esses segmentos alegam sofrerem mais violência e discriminação quando comparados com a identidade guei. Parte desse argumento baseia-se na premissa de que o quadro de dominação masculina da sociedade ocidental põe os homens gueis num patamar de prestígio com relação às demais identidades. Ao longo do texto, o acrônimo LGBT será utilizado quando se tratar do movimento social organizado.


(4) Refiro-me à elevação do índice de contaminação nas camadas mais pobres da população.


(5) A tradução literal de heterotopias seria “outros espaços”. Seriam espécies de posicionamentos que teriam o poder de justapor diversos espaços em um só lugar, espécie de contestação mítica e real do lugar em que vivemos. Sua função seria de mostrar o quanto pode ser “ilusório o espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada” (FOUCAULT, 2006, p. 420).


(6) Heterossexuais que rejeitam ativamente os privilégios associados à heteronormatividade e que estabelecem um compromisso estratégico contra essa norma.