domingo, 22 de junho de 2008

Crítica do documentário "Homens"

Crítica do documentário "Homens", de Lucia Caus e Bertrand Lira. O texto foi publicado no Overmundo e em breve deverá estar disponível por lá. Mas como o autor é prata da casa, a crítica já está disponível aqui!!!



Há homens em "Homens"?


por Paulo Gois Bastos


Talvez o que menos apareça no documentário Homens (22 min), de Lucia Caus e Bertrand Lira, sejam os homens (o dito gênero masculino da espécie humana). E aqui me arrisco em dar palpites sobre o porquê do título da obra. Ironia pode ser um deles, porém, pelo desenrolar do filme fica claro que o que acontece é um desconhecimento sobre o que vem a ser identidade de gênero por parte de quem produziu e dirigiu a obra. Diz muito sobre a postura documentarista que beira o turismo exótico por vivências diversas daquelas de quem documenta. Entre as nove personagens que aparecem no documentário, apenas três delas performatizam uma identidade homossexual masculina. Bianca, Amapola, Bárbara, Ângela entre outras (sim, são nomes femininos!) fazem referência a si sempre no feminino. O que mais seria preciso para se perceber que essas (esses?) sujeitas (sujeitos?) não são homens?


A maioria das personagens se encontra na margem, na fronteira, ora ultrapassando-as, de e entre os gêneros. O preconceito, a discriminação e a violência que sofrem se devem justamente a esse “desrespeito” aos limites. É por borrarem as categorias de gênero que uma (um?) delas (deles?) não pode agradecer a graça recebida na igreja e que outra (outro?) foi espancada (espancado?) no canavial. E é por não perceber que aquele corpo masculino não condiz com a sua identidade de gênero que Bianca quis fazer com as próprias mãos a mudança de sexo.


Então quais evidências seriam necessárias para que os diretores percebessem que aqueles corpos tidos como masculinos negam essa condição e não aceitam o fato de que possuir um pênis lhes põe um destino fixo como homens? Amapola, uma das personagens, esteve presente na sessão de lançamento, que ocorreu no último dia 12, no Cine Jardins, em Vitória. Ela, visivelmente feminilizada, demarca claramente esse pertencimento ao gênero feminino: “Tou agradecida por estar na cidade de Vitória”. A percepção desse borrão não é evidente para todos, nem as (os?) próprias (próprios?) sujeitas (sujeitos?) que vivem a transexualidade e a travestilidade constroem um discurso contra-normativo assim tão claro. Mas, definitivamente, o documentário não fala de homens, mas aceitemos momentaneamente a ironia do seu título.


O filme perdeu a chance de ir atrás das poderosas estratégias que fazem essas (esses?) sujeitas (sujeitos?) terem um cotidiano extremamente violentado, mas não sucumbirem a uma completa inadequação existencial – o que leva muitos ao suicídio antes mesmo de vivenciarem o desejo não heterossexual ou de se permitirem ultrapassar as fronteiras do gênero. Mostrou-se sim o quanto eles e elas se a dedicam ao lar, ao trabalho e foi ressaltada a busca pela felicidade como uma compensação à sua existência transgressora. Zé da Viúva, este (claramente?) um dos três homens do filme, fala dessas estratégias: já idoso se permitiu vivenciar uma homoafetividade, pois senão teria uma síncope ou algo parecido. A vida falou mais alto, negociou com a família, trouxe o objeto de afeto para o convívio íntimo e ainda deixa claro que a sua afeição é algo para além da relação erótica, o que desestabiliza ainda mais nossa percepção acerca das relações homoafetivas.


Mas o que prevalece ao longo do filme é uma coleção de tipos exóticos. Os mais desinibidos diante da câmera ganham mais tempo, outros só poucos segundos. Falta uma maior contextualização, falta-nos o cotidiano. Algumas personagens estão visivelmente constrangidas quando interpeladas por 'fale da sua história! Como foi a sua descoberta? Como procura ser feliz?'. Há um misto de vitimização, heroísmo e humor – mecanismos que depois de um certo momento do filme causa constrangimento (pistas de como se deu a relação personagem X equipe de produção). O que seria um momento para empoderar aquelas (aqueles?) sujeitas (sujeitos?) é, mais uma vez, uma apropriação estereotipada de suas vidas.


O cartaz já é um indicador desse recorte. As flores de plástico – componentes da cenografia e elemento kitsch da decoração de um lar no interior nordestino – marcam uma feminilidade também estereotipada naqueles corpos. O que significa Bárbara arrumando e decorando caprichosamente a mesa senão a perfomance de uma dedicada dona de casa? Mas o documentário não se propõe a falar de homens homossexuais do interior nordestino? Aquelas (aqueles?) sujeitas (sujeitos?) não seriam homens?


São e não são. São o que as teorias de gênero mais contemporâneas chamam de identidades queer, isso mesmo, estranho em inglês. Estranheza positivada, pois essas (esses?) sujeitas (sujeitos?) mostram o quanto o investimento normativo para a construção da dicotomia dos gêneros masculino e feminino é falho e artificial. Não dá conta dos nossos desejos, afetos, prazeres e expressões. Por isso, o corpo – patrimônio primeiro da nossa existência – borra, bagunça e denuncia essas categorias.


Homens diz muito pouco dos homossexuais do interior nordestino, e menos ainda sobre homens nordestinos. O título destoa do conteúdo do documentário. É mesmo uma ironia, apesar de eu não crer na intencionalidade dela. E assim como as tecnologias do gênero esquadrinham nossos corpos, desejos, afetos antes mesmo de nascermos, Homens esquadrinhou a vida daqueles(daquelas?) sujeitos(sujeitas?) queers nordestinos(nordestinas?). O documentário reforça a estranheza, agora aqui negativada, daquelas personagens. E mesmo que o riso alivie um pouco desse mal estar da suspensão categórica, ele continua lá a nos incomodar.


Ao que parece, os diretores darão continuidade a esse trabalho e produzirão um longa-metragem com o material gravado de que já dispõem. Espero que a nova obra tome outro rumo, que as vidas daqueles(daquelas?) sujeitos(sujeitas?) ganhem amplitude e que outras relações – para além da sexualidade e de um projeto de felicidade compensatória – apareçam. Que não seja apenas uma ampliação da coleção de tipos exóticos.


Um comentário:

Anônimo disse...

Felipe Moura.

Boa noite gente, meu comentário vem para falar de dois pontos. Um é ao que se presta o filme e outro a que se presta a crítica do Paulo. Creio que tanto o filme quanto a crítica do Paulo na verdade podem atender a um mesmo objetivo - impactar sujeitos e fornecer a eles a possibilidade de construir subjetividades que os leve a ter uma postura prática e discursiva frente à temática em apresentada.
Se os dois operam o mesmo mecanismo, não podemos dizer que o fazem no mesmo sentido. O filme se apropria de uma problemática do senso comum e sem crítica alguma reproduz o senso comum de maneira concentrada e com poder de fogo ampliado, na media em que usa do recurso de comunicação de mídia para impactar, reproduzindo o senso comum. A Crítica do Paulo não, ela vai a outro sentido, refuta não só o senso comum, que postula uma coerência de gênero que associa sexo a identidade de gênero, como ao fazer uso de um instrumental que objetiva a preocupação do senso comum, é capaz de desestruturar o discurso normativo do senso comum contido no filme.
Na crítica ao filme, Paulo questiona o senso comum contido no documentário e expõe um discurso objetivado sobre a temática do documentário, que pode ser subjetivado por outros e tornar-se o que o documentário não consegue ser, um instrumento empoderador para que os sujeitos criem novas práticas e discursos. Ao entra em contato com discursos objetivos sobre as relações de gênero, é possível se fazer uma crítica inovadora e possibilitar subjetividades instrumentalizadas e capazes de novas interpretações, inclusive para o filme, que privilegia a estética do exótico e uma exposição que "ousa" entrar em um "safári" em busca de tipos exóticos no interior nordestino. O filme revalida senso comum a crítica do Paulo desconstroi. O interessante é que os dois partem do senso comum, um constrói um senso comum “refinado” e outro descola dele, mas os dois retornam, um revalidando o senso comum o outro abre possibilidade de um novo senso comum, empoderado e instrumentalizado.